quinta-feira, 3 de setembro de 2015

O admirável mundo da hipócrisia

A média social dá o direito de falar a legiões de idiotas que antes conversavam apenas no bar depois de um copo de vinho, sem prejudicar a comunidade. Eles eram rapidamente silenciados, e agora eles têm o mesmo direito de falar de um Prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis.”
Umberto Eco.

Foram muitas as tentativas de escrever este texto. E muito os sentimentos envolvidos. Cheguei mesmo a pensar se valeria a pena fazê-lo.
A revolta com a hipocrisia que se vive por estes dias na Europa, nos média, nas redes sociais, nas conversas de ocasião, é deveras atroz. Falo do problema dos refugiados, falo das imagens, em especial do pequeno Aylan, falo acima de tudo de um continente que, de repente, acorda para um problema que o mundo já vive há décadas. Mas como era longe daqui, tinha-se pena, escrevia-se umas noticias de segunda linha, mas não era nada connosco. Agora não. É na casa dos Europeus, no continente das luzes, na terra do Iluminismo. Agora chegou a dor à consciência das pessoas. Agora, através do uso abusivo da individualidade de um ser humano, vamos mudar as consciências, vamos mudar o mundo, vamos mudar o futuro. Que ódio, é esse mesmo o meu sentimento, a esta hipócrita e reles maneira de pensar.
Afinal Pilatos deixou mesmo muitos descendentes. As mãos do homem tem demasiado sangue, e ele lava-as para poder deitar a cabeça na almofada, descansando a consciência, repousando os pecados que lhe atormentam a alma. É repugnante a forma como jornais, pessoas individuais, publicaram a foto do pequeno, e escrevendo que não o desejavam fazer, mas mesmo assim publicam, e depois as explicações…nem comento…
Há quantas décadas existe o campo de refugiados no Darfur? Há quantas décadas existe a fome em África, a desertificação, as migrações por causa dos conflitos?...Sim, todos conhecem estes casos, mas enquanto estiveram longe da Europa, o problema nunca foi nosso… logo, sempre foi melhor discutir as idiotices caseiras…
O problema da Síria, como praticamente em todos que envolve refugiados, é um conflito. E enquanto esse conflito persistir, as pessoa vão continuar a fugir. Logo enquanto a árvore estiver doente na raiz, a copa vai continuar a estar sem folhas. Mas em vez de procurar tratar das folhas que caem, porque não tratar da raiz, para que as folhas não caiam? Em vez de postar fotos de crianças que morrem, porque não participar mais activamente em movimentos de ajuda à mudança desses países, procurando fornecer meios de mudança de mentalidades, de consciências? Porque não educar os filhos para construírem uma consciência individual e fugirem aos rebanhos do vazio, aos colectivos da ignorância e da comodidade, de forma a começarem eles também a mudar o mundo?
Fotos? Eu posso partilhar convosco imensas de crianças mortas, e umas mais chocante do que as outras. Mas não o faço. Por respeito à individualidade de cada um, da sua existência, e porque prefiro evitar a morte do próximo, do que estar sempre a chorar o passado e ver morrer o futuro. Por isso publico a foto da escuridão, em sinal do movimento que invade a consciência do mundo, em especial da Europa.
Para quando a diminuição desta ideia imbecil de achar que é melhor termos piedade dos pobres, alimentando-os como tal, em vez de construirmos estruturas para que os pobres possam também eles perceber que afinal podem amanhã ser menos pobres, menos dependentes e mais pessoas, mais indivíduos, mais humanos?
E depois discute-se o numero de refugiados que cada país deve ou não receber, como se as pessoas fossem meros números entre milhões...
Existe tanto sangue nas mãos do homem...e lavam-se gratuitamente, e irresponsavelmente...e sempre com a desculpa de que “não tenho o poder de mudar nada, os políticos sim... e eles é que deviam mudar isto tudo...”
Termino só com a referencia a Portugal...daqui a uns dias, os refugiados vão ser substituídos neste campo do mediatismo, pelas eleições... aliás já hoje começam a ser por uma política que pousa a nu...e assim a hipocrisia vai continuando, cantando e andando.

De facto, não sei o que é pior…se a “invasão” dos refugiados ou se a invasão dos imbecis.