Quero gritar.
Sim, gritar, de boca bem aberta, em estado de berro, de som
estridente que quase torne todo o vidro num estilhaço.
Quero gritar porque estou farto do estereótipo. Do
pré-conceito, pré-concebido, da mania intensa e surreal de criar-se rebanhos de
cordeirinhos bem comportados, de caminhos que estão já definidos.
Quero gritar porque ser diferente nos dias de hoje é ser o
verdadeiro alienígena.
Quero gritar porque se vive pouco. Não pouco nos anos, mas
pouco mesmo, quase nada. Sobrevive-se, pensa-se que se vive, sonha-se em viver,
deseja-se viver. Vê-se a vida como uma espécie de inimiga dos hábitos, uma
pedra no calçado que doi e faz doer. Vende-se a ideia de ela é funesta, um
sofrimento continuo, uma experiencia horrível. Banaliza-se a sobrevivência.
Quero gritar porque a morte tornou-se um designação mais
verdadeira, mais real do que a própria vida. Uma não existe sem a outra, mas
parece que a morte existe bem sem a vida. Porque fala-se em morte e em vida por
gráficos, por estatísticas, por números, por algarismos e contas matemáticas
onde se junta que um morto mais um morto é igual a dois mortos. Não se preserva
a ideia da morte como um prolongamento da vida , preserva-se a morte como
inexistência da vida. Morre-se logo não se vive.
Quero gritar porque vive-se num mundo de mascaras perfeitas,
construídas na mais dura imperfeição. Desejos de mudar de corpo, de lábios, de
cara, de seios, de nomes, de identidades. Vive-se num mundo onde se tem
vergonha de se existir. Onde a sociedade aprisiona os ditos feios, aqueles que
não são cobiçados. Definem a pessoa pelo aspecto, pelo que veste, pelo que
despe, pelo que tem e o que não tem. Definem a pessoa pelo que faz e o que não
pode fazer. Definem a pessoa pelo lugar onde nasceu, pelo lugar onde vive. Definem
a pessoa pela cor, pelo género, pela cultura. Esta sociedade que apela aos
cantos do universo ser a mais livre, esconde-se nas sombras da sua vergonha, da
sua prisão. Do estereótipo. Do preconceito. Do não aceitar a diferença. Esta
sociedade cria o pobre para sentir compaixão. Esta sociedade cria o sem abrigo
para sentir necessidade de ajudar. Esta sociedade cria o desgraçado para sentir
pena. Esta sociedade cria o excluído para justificar o incluído. Esta sociedade
cria o crime para justificar o perdão.
Quero gritar porque és olhado de lado pelo medo que sentes.
Sentir receios é ser-se fraco, é ser-se menor, inferior. Eu sinto medo. Tenho
medo de morrer. Tenho medo de não conseguir fazer o que podia fazer, mas não o
faço porque não me deixei fazê-lo. Criamos desculpas com a facilidade de
respirar. Custa-nos criar pressupostos para conseguir atingir. Procuramos
razões para fazer algo, mas ficamos sempre presos a costumes enraizados, a
sentidos do passado, a demasiadas expectativas do futuro. Sentimos medo. Mas
não admitimos que o sentimos. Somos todos hipocondríacos, mas dizemos que não o
somos. Mas quando estamos doentes ficamos assustados, receamos o pior.
Procuramos a solução em todo lado menos em nós. Procuramos a saída em todo o
mundo menos no nosso. E depois nunca temos culpa. Não somos culpados por sermos
sempre os mesmos. Alguém nos obrigou a sê-lo. Nunca somos culpados pelo mal.
Alguém nos ensinou a sê-lo. Nunca somos culpados pela guerra. Alguém nos
obrigou a despoletá-la. Nunca somos culpados pela doença. Algo a provocou.
Quero gritar porque de mal vive o homem. Precisa-se de ver a
dor do próximo para justificar a nossa. Precisa-se de ver a vergonha do próximo
para se esconder a nossa. Precisa-se de ver a paixão do próximo para não se
assumir a sua. Precisa-se ver o sucesso do próximo para abafarmos os sonhos,
para matar as vontades de alcançar. Precisa-se de ídolos não para ter exemplos,
mas para idolatrar o deus que não se conhece, para abandonar-se a sua
identidade e ficar refém da personalidade de um outro. Precisa-se de sangue dos
outros para sentir-se, por breves segundos, que se vive melhor do que alguém.
Precisa-se de sabermos da dor do próximo, da sua doença, da sua morte, para
criar a ideia de que a sorte é uma escolha divina e não um trabalho terrestre.
Precisa-se da sorte e do azar como palavras que definem o que fazer e não
fazer.
Quero gritar porque é preciso crescer estudando, casar bem e
com uma boa profissão, obter uma casa hipotecada até depois da morte, mas que
seja orientada para a amostra, um carro que seja a atenção de todos, constituir
uma família para a sociedade, ter filhos para a sociedade, ter poupanças para a
sociedade, ter por ter, pela posse de mostrar à sociedade.
Quero gritar porque o homem é dinheiro. O homem vive e
respira o dinheiro. O dinheiro é o dono do homem, da vida. O dinheiro compra a
saúde, diz-se pelo mundo fora. O dinheiro compra a felicidade, escreve-se pelos
jornais fora. O dinheiro adquire o amor, escreve-se pelos livros fora. O
dinheiro adquire tudo, mas tudo morre e o dinheiro nada adquire. O dinheiro
parece não ter fronteiras no espírito dos homens, e mesmo que este o não
admita, sabe que ele supera a sua existência, porque assim o deixa.
Quero gritar porque não se respeita a Natureza, o Universo. O
homem não respeita o próximo animal. Agarra-se à ideia da cadeia alimentar para
justificar tudo. Não come por sobrevivência como todos os animais, come por
abundância, por ganância, por um falso prazer. O homem cria animais para poder
comer. Não para se alimentar, mas sim para dizer que come, para mostrar que
come. Pior. O homem inventa comida para criar a fome. O alimento abunda tanto
como a fome. Porque o alimento tornou-se uma fonte de produção em massa, para
produzir lucros, para produzir vitimas, para produzir diferenças. E as
diferenças conduzem à fome. A fome do alimento, a fome da consciência, a fome
na substância da existência. E a fome leva ao extermínio. O homem cria e produz
para destruir. Destrói para construir. Constrói para exterminar. O homem não
entende, não respeita, não vê. A cegueira está a destrui-lo mais do que à
Natureza. Defendemos a Natureza. Ela não precisa de defesa. Ela sabe muito bem
o que fazer para viver, para existir. O homem é quem precisa de defesa. Os
animais que habitam podem extinguir-se, mas deixaram sempre o legado da sua
verdade, do seu saber, da sua mais pura beleza de terem existido. Deixam o
rasto do respeito por quem sempre tudo lhes deu, quem os criou, quem os
alimentou e quem nunca os aprisionou, a Natureza, o Universo. O homem irá
deixar que legado? O de destruidor. O de criador do principio do fim, do seu
fim. Depois tudo ficará, menos ele, menos todos nós. Um leão nunca foi capaz de
se suicidar. Um elefante sabe onde deve morrer. E o homem? Sabe o homem onde pertence,
qual é a sua raiz? Saberá o homem qual de facto é a sua essência?
Quero gritar.
Tenho medo? Sim
Tenho coragem? Sim.
Tenho Fé? Sim.
Tenho Sonhos? Sim.
Que Sonhos? De ser quem sou na realidade.
Tenho Amor? Sim.
Sou perfeito? Não.
Sou prisioneiro? Sim
De quê? De não conseguir soltar-me de todas as amarras do
estereótipo.
Que parte dele? Do dinheiro. Do poder que ele me dá, em
inúmeras situações. Preferia mais a responsabilidade que devia ter sobre ele.
Poder e responsabilidade não são a mesma coisa? Não. Poder é
ganância, responsabilidade é existência. Existência no campo da
individualidade, no campo da participação como individuo, na partilha como
individuo.
Queres mudar? Sim.
De que forma? Mostrando quem eu de facto sou.
Porque nunca o fizeste? Porque fui educado e cresci dentro
do estereótipo. A sociedade sempre me foi incutindo, directa ou indirectamente
essa visão de que a Vida é um relógio, onde os ponteiros ditam o tempo em que
devemos ser algo.
O que é o tempo? A forma de um caminho. Um crescimento onde
nascemos velhos e morreremos bebés. Pois, alguém escreveu, quando souber todas
as respostas, novas perguntas surgirão.
E o que é a felicidade? Um estado de espírito. A felicidade
é quando se descobre que de facto viver é mesmo pertencer à Vida no seu todo,
no seu principio e no seu fim. É ser-se corpo que habita, cresce, aprende,
ensina, volta a aprender e volta a ensinar. Cria e protege, cria e respeita,
cria e partilha com amor. Mas também se é cinza, pó que volta a criar, a
despertar mais Vida, se deixa de ser corpo e se é alma, vento que sopra pela
tarde e água que cai pela manhã. Felicidade é isto. É saber que se sofre para
se poder sorrir. É saber que se ama para se poder colher. É saber que se
partilha para se poder construir. É saber que se ensina para se poder voltar a
aprender. Felicidade é o equilíbrio das descobertas.
Quem és tu, o que gritas? Tenho um nome. Deram-me no
nascimento. Tenho uma forma. Tenho uma identidade. Tenho ignorância,
ingenuidade. Tenho conhecimento, algum. Tenho sentimentos. Tenho desejos, sonhos.
Tenho virtudes e imperfeições. Sou um explorador, nasci para ser pioneiro. Mas
no bom sentido. Sermos os descobridores de um mundo novo, de um mundo onde tudo
está ligado, onde tudo se relaciona, onde tudo tem um sentido, onde tudo tem um
caminho. Um mundo onde o Poder está entregue à Vida, a uma palavra, aliás, mais
do que uma palavra, supera a palavra, é o que é. Não sou zelador como a maioria
dos homens quer ser. Não nascemos para zelar por nada, porque zelar na cabeça
do homem é destruir, pois é tornar-se egoísta, pensar ser o epicentro de um
mundo que não lhe pertence. Hoje sou corpo, amanhã serei cinza. Hoje vejo,
amanhã sentirei. Hoje sou eu, apenas uma migalha simples. Mas agradecido por
ser esta migalha simples. Porque assim sou eu e existo.
Grato Vida por gritar!