quinta-feira, 12 de março de 2015

Maus tratos Animais



Conto Oriental

“ Um filho da Deusa, a brincar, sem querer arranhou um cachorrinho. Quando voltou para casa, correu para a sua mãe para lhe dar um beijo. Ao aproximar-se do bel rosto da Deusa, reparou que tinha um arranhão que lhe sulcava a face.
-       Mãe – disse o menino – tens uma ferida na bochecha, o que aconteceu?
Com o olhar terno e amoroso, a Deusa contemplou o filho, e com a voz tingida de melancolia, disse:
-       É um arranhão que me fizeste com as unhas.
-       Mas, mãe – apressou-se a replicar o rapazinho – nunca me atreveria a magoar-te. Não há ser que ame mais do que a ti, minha querida mãe. – Um sorriso desenhou-se nos lábios da Deusa.
-       Meu filho – disse – já te esqueceste que hoje de manhã arranhaste um cachorrinho?
-       Não, mãe, lembro-me muito bem. Não sei como, arranhei-o, é verdade.
-       Ora, meu filho, não sou eu toda a criação? Ao teres arranhado o bichinho, estavas a arranhar-me a mim. Cuida-te de nunca ferir nenhum ser vivo, ou estarás a ferir-me a mim”



Quando adquirimos uma visão clara, apercebemo-nos de que toda a forma de vida é sagrada e deve ser respeitada. Visto que uma grande parte dos seres humanos se encontram num estado de minoria espiritual e emocional, não só não respeitam as outras criaturas como lhes infringem dor de forma indesculpável. O comportamento de muitos seres humanos em relação aos outros e em relação aos animais indefesos é verdadeiramente vergonhoso e atroz, e põe em evidência quão pouco evoluímos interiormente, por mais que a técnica tenha avançado. Se o homem de há 300 000 anos caísse no mundo actual e assistisse à forma brutal como nos comportamos despreocupadamente, ficaria aterrorizado.

Ramiro Calle, in Os Melhores Contos Espirituais do Oriente

quinta-feira, 5 de março de 2015

Grito!




Quero gritar.
Sim, gritar, de boca bem aberta, em estado de berro, de som estridente que quase torne todo o vidro num estilhaço.
Quero gritar porque estou farto do estereótipo. Do pré-conceito, pré-concebido, da mania intensa e surreal de criar-se rebanhos de cordeirinhos bem comportados, de caminhos que estão já definidos.
Quero gritar porque ser diferente nos dias de hoje é ser o verdadeiro alienígena.
Quero gritar porque se vive pouco. Não pouco nos anos, mas pouco mesmo, quase nada. Sobrevive-se, pensa-se que se vive, sonha-se em viver, deseja-se viver. Vê-se a vida como uma espécie de inimiga dos hábitos, uma pedra no calçado que doi e faz doer. Vende-se a ideia de ela é funesta, um sofrimento continuo, uma experiencia horrível. Banaliza-se a sobrevivência.
Quero gritar porque a morte tornou-se um designação mais verdadeira, mais real do que a própria vida. Uma não existe sem a outra, mas parece que a morte existe bem sem a vida. Porque fala-se em morte e em vida por gráficos, por estatísticas, por números, por algarismos e contas matemáticas onde se junta que um morto mais um morto é igual a dois mortos. Não se preserva a ideia da morte como um prolongamento da vida , preserva-se a morte como inexistência da vida. Morre-se logo não se vive.
Quero gritar porque vive-se num mundo de mascaras perfeitas, construídas na mais dura imperfeição. Desejos de mudar de corpo, de lábios, de cara, de seios, de nomes, de identidades. Vive-se num mundo onde se tem vergonha de se existir. Onde a sociedade aprisiona os ditos feios, aqueles que não são cobiçados. Definem a pessoa pelo aspecto, pelo que veste, pelo que despe, pelo que tem e o que não tem. Definem a pessoa pelo que faz e o que não pode fazer. Definem a pessoa pelo lugar onde nasceu, pelo lugar onde vive. Definem a pessoa pela cor, pelo género, pela cultura. Esta sociedade que apela aos cantos do universo ser a mais livre, esconde-se nas sombras da sua vergonha, da sua prisão. Do estereótipo. Do preconceito. Do não aceitar a diferença. Esta sociedade cria o pobre para sentir compaixão. Esta sociedade cria o sem abrigo para sentir necessidade de ajudar. Esta sociedade cria o desgraçado para sentir pena. Esta sociedade cria o excluído para justificar o incluído. Esta sociedade cria o crime para justificar o perdão.
Quero gritar porque és olhado de lado pelo medo que sentes. Sentir receios é ser-se fraco, é ser-se menor, inferior. Eu sinto medo. Tenho medo de morrer. Tenho medo de não conseguir fazer o que podia fazer, mas não o faço porque não me deixei fazê-lo. Criamos desculpas com a facilidade de respirar. Custa-nos criar pressupostos para conseguir atingir. Procuramos razões para fazer algo, mas ficamos sempre presos a costumes enraizados, a sentidos do passado, a demasiadas expectativas do futuro. Sentimos medo. Mas não admitimos que o sentimos. Somos todos hipocondríacos, mas dizemos que não o somos. Mas quando estamos doentes ficamos assustados, receamos o pior. Procuramos a solução em todo lado menos em nós. Procuramos a saída em todo o mundo menos no nosso. E depois nunca temos culpa. Não somos culpados por sermos sempre os mesmos. Alguém nos obrigou a sê-lo. Nunca somos culpados pelo mal. Alguém nos ensinou a sê-lo. Nunca somos culpados pela guerra. Alguém nos obrigou a despoletá-la. Nunca somos culpados pela doença. Algo a provocou.
Quero gritar porque de mal vive o homem. Precisa-se de ver a dor do próximo para justificar a nossa. Precisa-se de ver a vergonha do próximo para se esconder a nossa. Precisa-se de ver a paixão do próximo para não se assumir a sua. Precisa-se ver o sucesso do próximo para abafarmos os sonhos, para matar as vontades de alcançar. Precisa-se de ídolos não para ter exemplos, mas para idolatrar o deus que não se conhece, para abandonar-se a sua identidade e ficar refém da personalidade de um outro. Precisa-se de sangue dos outros para sentir-se, por breves segundos, que se vive melhor do que alguém. Precisa-se de sabermos da dor do próximo, da sua doença, da sua morte, para criar a ideia de que a sorte é uma escolha divina e não um trabalho terrestre. Precisa-se da sorte e do azar como palavras que definem o que fazer e não fazer.
Quero gritar porque é preciso crescer estudando, casar bem e com uma boa profissão, obter uma casa hipotecada até depois da morte, mas que seja orientada para a amostra, um carro que seja a atenção de todos, constituir uma família para a sociedade, ter filhos para a sociedade, ter poupanças para a sociedade, ter por ter, pela posse de mostrar à sociedade.
Quero gritar porque o homem é dinheiro. O homem vive e respira o dinheiro. O dinheiro é o dono do homem, da vida. O dinheiro compra a saúde, diz-se pelo mundo fora. O dinheiro compra a felicidade, escreve-se pelos jornais fora. O dinheiro adquire o amor, escreve-se pelos livros fora. O dinheiro adquire tudo, mas tudo morre e o dinheiro nada adquire. O dinheiro parece não ter fronteiras no espírito dos homens, e mesmo que este o não admita, sabe que ele supera a sua existência, porque assim o deixa.
Quero gritar porque não se respeita a Natureza, o Universo. O homem não respeita o próximo animal. Agarra-se à ideia da cadeia alimentar para justificar tudo. Não come por sobrevivência como todos os animais, come por abundância, por ganância, por um falso prazer. O homem cria animais para poder comer. Não para se alimentar, mas sim para dizer que come, para mostrar que come. Pior. O homem inventa comida para criar a fome. O alimento abunda tanto como a fome. Porque o alimento tornou-se uma fonte de produção em massa, para produzir lucros, para produzir vitimas, para produzir diferenças. E as diferenças conduzem à fome. A fome do alimento, a fome da consciência, a fome na substância da existência. E a fome leva ao extermínio. O homem cria e produz para destruir. Destrói para construir. Constrói para exterminar. O homem não entende, não respeita, não vê. A cegueira está a destrui-lo mais do que à Natureza. Defendemos a Natureza. Ela não precisa de defesa. Ela sabe muito bem o que fazer para viver, para existir. O homem é quem precisa de defesa. Os animais que habitam podem extinguir-se, mas deixaram sempre o legado da sua verdade, do seu saber, da sua mais pura beleza de terem existido. Deixam o rasto do respeito por quem sempre tudo lhes deu, quem os criou, quem os alimentou e quem nunca os aprisionou, a Natureza, o Universo. O homem irá deixar que legado? O de destruidor. O de criador do principio do fim, do seu fim. Depois tudo ficará, menos ele, menos todos nós. Um leão nunca foi capaz de se suicidar. Um elefante sabe onde deve morrer. E o homem? Sabe o homem onde pertence, qual é a sua raiz? Saberá o homem qual de facto é a sua essência?

Quero gritar.
Tenho medo? Sim
Tenho coragem? Sim.
Tenho Fé? Sim.
Tenho Sonhos? Sim.
Que Sonhos? De ser quem sou na realidade.
Tenho Amor? Sim.
Sou perfeito? Não.
Sou prisioneiro? Sim
De quê? De não conseguir soltar-me de todas as amarras do estereótipo.
Que parte dele? Do dinheiro. Do poder que ele me dá, em inúmeras situações. Preferia mais a responsabilidade que devia ter sobre ele.
Poder e responsabilidade não são a mesma coisa? Não. Poder é ganância, responsabilidade é existência. Existência no campo da individualidade, no campo da participação como individuo, na partilha como individuo.
Queres mudar? Sim.
De que forma? Mostrando quem eu de facto sou.
Porque nunca o fizeste? Porque fui educado e cresci dentro do estereótipo. A sociedade sempre me foi incutindo, directa ou indirectamente essa visão de que a Vida é um relógio, onde os ponteiros ditam o tempo em que devemos ser algo.
O que é o tempo? A forma de um caminho. Um crescimento onde nascemos velhos e morreremos bebés. Pois, alguém escreveu, quando souber todas as respostas, novas perguntas surgirão.
E o que é a felicidade? Um estado de espírito. A felicidade é quando se descobre que de facto viver é mesmo pertencer à Vida no seu todo, no seu principio e no seu fim. É ser-se corpo que habita, cresce, aprende, ensina, volta a aprender e volta a ensinar. Cria e protege, cria e respeita, cria e partilha com amor. Mas também se é cinza, pó que volta a criar, a despertar mais Vida, se deixa de ser corpo e se é alma, vento que sopra pela tarde e água que cai pela manhã. Felicidade é isto. É saber que se sofre para se poder sorrir. É saber que se ama para se poder colher. É saber que se partilha para se poder construir. É saber que se ensina para se poder voltar a aprender. Felicidade é o equilíbrio das descobertas.

Quem és tu, o que gritas? Tenho um nome. Deram-me no nascimento. Tenho uma forma. Tenho uma identidade. Tenho ignorância, ingenuidade. Tenho conhecimento, algum. Tenho sentimentos. Tenho desejos, sonhos. Tenho virtudes e imperfeições. Sou um explorador, nasci para ser pioneiro. Mas no bom sentido. Sermos os descobridores de um mundo novo, de um mundo onde tudo está ligado, onde tudo se relaciona, onde tudo tem um sentido, onde tudo tem um caminho. Um mundo onde o Poder está entregue à Vida, a uma palavra, aliás, mais do que uma palavra, supera a palavra, é o que é. Não sou zelador como a maioria dos homens quer ser. Não nascemos para zelar por nada, porque zelar na cabeça do homem é destruir, pois é tornar-se egoísta, pensar ser o epicentro de um mundo que não lhe pertence. Hoje sou corpo, amanhã serei cinza. Hoje vejo, amanhã sentirei. Hoje sou eu, apenas uma migalha simples. Mas agradecido por ser esta migalha simples. Porque assim sou eu e existo.
Grato Vida por gritar!




quarta-feira, 4 de março de 2015

"Raça, gênero e classe" por Luiz Felipe Pondé

Este texto é o artigo de Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.

"Existem alguns livros que são urgentes. Hoje vou falar de um deles, principalmente para quem atua na área que os americanos chamam de "humanities" –humanidades. Ou, como dizemos aqui, ciências humanas e literatura.
Fiquei boa parte dos anos 1990 em Paris, pesquisando para o doutorado. Nessa época, fiz muitas entrevistas com intelectuais importantes do cenário europeu.
Um deles, Alain Finkielkraut, falava do que ele chamava de "culto da vítima", ou seja, a tendência cultural que surgia então de cultuar vítimas sociais. Se você conseguisse uma "carteirinha de vítima social", sua vida estava em parte resolvida. E escrever sobre essas "vítimas" era garantia de sucesso acadêmico.
Mas voltando ao livro. "The Victims' Revolution, the Rise of Identity Studies and the Closing of the Liberal Mind" (a revolução das vítimas, o surgimento dos estudos de identidade e o fechamento da mente liberal, em tradução livre), de Bruce Bawer, publicado pela Broadside Books em 2012, é um livro urgente para as humanidades.
Vale salientar que o "liberal" do título é o liberal no sentido americano, ou seja, algo como "progressista" ou "esquerda".
Uma das grandes qualidades desta obra, inédito no Brasil, é a de diagnosticar uma coisa que todo mundo sabe, mas tem medo de dizer: as humanidades agonizam sob a bota do que ele chama de "estudos disso e daquilo" e que, basicamente, se refere a estudos de algum tipo de vítima social.
Você não sabe o que é uma vítima social? Pergunte a algum filósofo, sociólogo ou historiador e ele lhe fará uma lista. Se os olhos dele encherem de lágrimas é porque se trata de um "crente". Shakespeare, um gênio? Nada! Um opressor branco e heterossexual. Dostoiévski? Pior, porque além disso tudo era um cristão convicto. E por aí vai.
Não, não vou dar o gostinho aos inteligentinhos e continuar a lista de "malvados" para a "revolução das vítimas". Comprem o livro. Ou editores que não temem a patrulha fascista na academia e no mundo da cultura como um todo publiquem-no para que professores e alunos corajosos tenham acesso ao título em nossa língua.
Uma diferença básica entre o estudo clássico das ciências humanas e o tatibitate dos estudos de identidade, ou "masturbação ao redor das vítimas", é que nos estudos clássicos você lê Tolstói para aprender quem somos e como lidar com essa nossa humanidade atormentada.
No caso do tatibitate do "estudo das vítimas", o estudo visa apenas converter os alunos aos estudos de "raça, gênero e classe". Não importa o autor –se não for alguém da patota ou alguma "vítima", pau nele.
A paisagem repetitiva e pobre revela a falta de vocação para lidar com as complexidades e ambiguidades da condição humana. Basta gritar coisas como "opressão", "injustiça social", "capitalismo", e você passou na matéria ou defendeu seu doutorado com louvor.
Bawer faz referência a um dos livros que estaria na origem da formação dos professores que hoje torturam os alunos para que eles se façam crentes desse tatibitate.
Um dos livros seminais desses estudos é "Pedagogy of the Oppressed". Reconheceu a tradução? Sim, é claro! O famoso "Pedagogia do Oprimido", de Paulo Freire, obra essencial para a patrulha ideológica nas universidades americanas.
Incrível porque Freire, que se via como um "libertador", é o mesmo que na época louvava o assassino Mao Tse-Tung e sua revolução cultural como similar ao seu "projeto pedagógico", além, é claro, do grande assassino Che Guevara, também um guru da liberdade. Risadas?
Com linguagem "evangélica", termo de Bawer, Freire diz frases de efeito como "Nenhuma educação é neutra". Uau!
Mas o mais ridículo da história dessa pedagogia barata é que os regimes adorados por Freire, o chinês e o cubano, nunca utilizaram esse tatibitate. Pelo contrário, pegaram seus melhores alunos e os encheram de conteúdo "do opressor", a fim de produzirem uma boa educação.
Só pedagogos e a moçada das humanidades no Ocidente riquinho é que compraram essa bobagem. Resultado: as ciências humanas, em grande parte, viraram um lixo. Umas igrejinhas."